segunda-feira, 30 de junho de 2008

Charneca em Flor

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu bruel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!




Florbela Espanca


Bibliografia

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.




Ricardo Reis

Amar...

Amar é...

Amar é chorar como quem ri
É tremer de frio e sentir calor
É perder o sangue sem dor
É estar triste quando sorri
Amar é acordar sem ter dormido
É sentir o coração nas mãos
É suar sem se mexer, é gemido
É intenso querer fazer Amor contigo
Amar é andar mesmo sem pernas
É ser odiado e gostar de ti
É perder a cabeça e não apenas
É teu perfume no ar, eu senti
Amar é sem reino ser Rei
É lutar sem espada
É ser humilhado e dizer Amei
Amar multiplicação de sentir centrado em ti




Pedro Lopes - Reminiscência de Infinito Sentir
Ecopy – Porto – 2007

Se tanta pena tenho merecida

Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,
ƒÉ bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.



Luís de Camões

As Amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.




Eugénio de Andrade ("O Outro Nome da Terra")

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Lubíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.





Bocage

Sem abrigo, sem tudo e sem nada

Sem abrigo, sem Amor
Com frio, com fome

Inexistente para os políticos
Invisível para os executivos
Vivo à margem, num canto
Procurando uma réstia de alimento
Nos contentores dos senhores
Amnésia da minha família
Ingratidão dos meus ex-amigos

No metro vendo "Cais"
Sem abrigo, sem tecto

Só o sol é verdadeiramente democrático
Nesta sociedade podre
De camas de cartão

Anjos humanos despertam na noite
Para servir as nossas sopas
A troco de um sorriso, que tudo lhes paga

Sem abrigo, sem tudo

Assistentes sociais
Dos gabinetes acondicionados
Dos horários de escritório
Que nada fazem, e tudo ganham

Sem abrigo, sem nada

Um homem não é pobre se nada tiver
Um homem só é pobre, se nada Amar...



Poesia de Pedro Lopes (direitos reservados)

Ó tu, consolador dos malfadados,

Ó tu, consolador dos malfadados,
Ó tu, benigno dom da mão divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:

Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos d'amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visão de seus agrados:

Filha das trevas, frouxa sonolência,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausência!

Ah!, findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência
No mudo estado, que arremeda a morte.




Bocage

domingo, 29 de junho de 2008

Soneto do Amor Total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.




Vinícius de Morais

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sábado, 28 de junho de 2008

De quantas graças tinha, a Natureza

De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.




Luís de Camões

Mar filósofo

Lancei a minha semente ao mar
Como se este fosse terra fértil
Sem saber o quanto o sal é estéril
De todos os olhos apenas os meus enganar

Esperei deitado na areia vendo barcos passar
O céu trovar, a maré encher e esvaziar
Muitas foram as luas, e calendários riscados
Tantas horas, dias, meses, e anos roubados

Tantas cartas de Amor, palavras doces, e poemas
Tudo cogitei, tudo indaguei, todos teoremas
Mas todos meus ideais foram por ti subjugados

Seguiste em frente sem remorso ou pena
Dos anos que me haviam sido roubados
Do meu património que havias delapidado



Pedro Lopes

Entardecer

Existem dias com perfume de Primavera.
Outros há, ainda, de olorosa presença outonal…
Mas, hoje… Hoje é um dia sem tempo, num espaço verde,
pintado com os últimos raios de um ocaso precoce,
e daí, talvez não…
A silhueta negra de um cão aninha-se a meus pés,
numa existência quente e de momentânea docilidade.
O restolhar apressado de uma rola bravia,
prende a ave e uma fita de céu, onde ela levita,
no olhar felino do cão.
Nessas duas íris escuras,
descubro-lhe o mesmo infinito,
que preenche o horizonte.
É um espaço de azul descorado, onde, à noite,
as estrelas encontram o seu leito de etéreo negrume.
E como que anunciando o crepúsculo,
as asas anoitecidas de um melro
põem na tarde, que finda, uma nota de nostalgia,
flauteada pelo seu bico de ouro cinzelado.
Uma imensidade de corolas amarelas,
matizam círculos de delicadas pétalas brancas,
a voltear na aragem,
como girândolas nevadas,
com o sol nelas a espreitar…


Lurdes Breda

Poema

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).



Álvaro de Campos

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.

Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.



Alberto Caeiro

sexta-feira, 27 de junho de 2008

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.


Eugénio de Andrade

Pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.



eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.



Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.



Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.



António Gedeão

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.




Fernando Pessoa

Sou um guardador de rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.


Alberto Caeiro

Puedo escribir los versos más tristes esta noche

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.


Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos."


El viento de la noche gira en el cielo y canta.


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.


En las noches como esta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.


Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.


Oir la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.


Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche esta estrellada y ella no está conmigo.


Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.


Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.


La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.


Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.


De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.


Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.


Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.


Aunque este sea el ultimo dolor que ella me causa,
y estos sean los ultimos versos que yo le escribo.



Pablo Neruda

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!



Florbela Espanca

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?



Luís de Camões

Verdes são os campos

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasteis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não não entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luis de Camões

Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca